Uma grande inovação política pode
ter ocorrido em 20 de setembro, quando os movimentos sociais da Cultura
reuniram-se com a nova ministra da área, Marta Suplicy. O encontro
permite ter esperanças na recuperação de um ministério extremamente
inovador, durante o governo Lula – porém opaco, nos últimos dois anos.
Mas seu alcance vai além. Ele abre novas janelas para a ação dos
movimentos que reclamam a autonomia e a reinvenção da política, mas que
não abrem mão de exercer influência sobre o Estado desde já. E marca um
contraste brutal entre a ação da sociedade civil organizada e o das
grandes empresas e lobbies – acostumados a colonizar o poder; fazê-lo
agir segundo seus interesses privados; cultivar os sigilos
comprometedores, o tráfico de influências e múltiplas formas de
corrupção.
Tão logo toma posse, qualquer
governante é cercado de aconchegos e ameaças, pelos grupos de pressão. O
processo nunca é transparente. Por um lado, há projetos mirabolantes,
propostas, reuniões com assessores, insinuações sobre financiamento de
campanhas eleitorais futuras. Por outro, sinais de que, caso
contrariados, os grupos econômicos serão capaz de reagir. A mídia é
peça-chave no processo. “O usineiro faz barulho com orgulho de
produtor”, notou Chico Buarque há anos. Às autoridades que se submetem,
serve-se os holofotes da fama; às que destoam, as portas do inferno.
A reivindicação de autonomia,
expressa pela sociedade civil há tempo, procura romper com este
processo. Indica que política vai muito além dos gabinetes e das
eleições: implica atitudes e atos assumidos a todo momento e que
começam, desde já, a produzir transformações.
Mas como resolver a equação
delicadíssima das relações com o poder instituído? Desprezá-lo – o que
permite ao capital colonizá-lo com facilidade ainda maior? Resignar-se a
suas regras, aceitando e aderindo a relações anti-democráticas, na
esperança de mudá-las num horizonte cada vez mais distante e
inatingível?
Construído a partir de uma
iniciativa da rede Fora do Eixo, o encontro dos movimentos da Cultura
com a nova ministra oferece uma nova resposta. E se a sociedade civil,
mantendo explicitamente sua autonomia, dialogar com o poder de forma
aberta? Em si mesma, a atitude representa uma ruptura: obriga o Estado a
praticar uma democracia e transparência há muito esquecidas – e
provavelmente mortais, para os interesses que procuram colonizar a
política. Basta imaginar o que ocorreria, por exemplo, se fossem
públicos os debates sobre como aplicar, em cada cidade, os recursos
destinados a Transportes, Segurança, Urbanização ou Educação. Como se
sustentariam, à luz do dia, as decisões tomadas, sempre a portas
fechadas, para favorecer a minoria que tem carros, vive em bairros
“nobres” e se julga “culta”?
A iniciativa que pode construir um
novo MinC materializou-se num grande fato político e num documento,
entregue à ministra Marta Suplicy e reproduzido abaixo. Vale a pena
conhecê-lo. Sinaliza algo também novo. Dispostos a reivindicar
abertamente diante do Estado e a conservar sua autonomia, os movimentos
sociais elevam o nível do debate e resgatam uma dimensão que a política
nunca deveria ter perdido: a polêmica indispensável à construção
democrática do futuro comum.
Como reagirão, diante da carta
abaixo, os interesses encastelados nas relações tradicionais entre
Estado e Cultura? Seria instrutivo (e delicioso…) vê-los apresentar, de
público, seus argumentos… (A.M.)
CARTA DO MOVIMENTO SOCIAL DAS CULTURAS
Prezada Ministra Marta Suplicy,
Sua posse significa para nós a possibilidade de recuperar a grandeza e
relevância na ação do Ministério da Cultura. Sua trajetória política
como prefeita, ministra e senadora nos abre enormes possibilidades de
avanço. Oportunidade de recuperar, na área cultural, o sentido de
mudança que marcou a eleição de um operário e uma mulher
como presidentes. Sentido de uma nova importância estratégica para a
cultura que redefiniu a ação do Estado, desde a eleição do ex-presidente
Lula – e que tem no governo da presidente Dilma a possibilidade ir
além. Em todas as áreas sociais, mas na cultura
em especial, o governo Lula ampliou a ação do poder público, tornando-a
abrangente e complexa. E também definiu um novo lugar da sociedade.
Envolvendo-nos a todos na co-responsabilidade de formulação e gestão das
políticas, deu um salto nas relações entre governo e sociedade civil.
Em especial na cultura, o governo passou a se relacionar com dezenas de
milhares de projetos, grupos e movimentos culturais. Os mais de 4000
pontos, pontões e pontinhos são apenas 10% das parcerias estabelecidas.
Acreditamos que esta amplitude é um dado positivo não apenas para nós,
do campo cultural, mas para a qualidade do desenvolvimento que queremos
para o Brasil.
Consideramos que a gestão de Ana de Hollanda (e sua equipe de Secretários e presidentes) foi marcada por ausência de diálogo, interrupção de política públicas, omissão frente aos grandes temas e conservadorismo político. Focado na indústria cultural tradicional, nas belas artes, o MinC perdeu significado social, político e cultural. Regredindo para uma ideia elitista de cultura, a gestão Hollanda dedicou-se surpreendentemente a negar o que havia sido contruído em oito anos. A nova gestão herda agora muitos destes nós e desafios. No vácuo deixado pelo MinC, os movimentos culturais ocuparam o vazio não apenas para resistir, mas para levar adiante a agenda da cultura. Desse ponto de vista, muito avançamos em lucidez e na capacidade de defender agendas que unem a maior paret do setor cultural. Acreditamos que sua posse encerra este ciclo. E por isso defendemos que os programas e ações precisam não apenas ser retomados, mas fortalecidos, ampliados e atualizados. A sociedade quer voltar a formular junto ao MinC, sobretudo, para abrir novas portas e caminhos não desbravados.
Consideramos que a gestão de Ana de Hollanda (e sua equipe de Secretários e presidentes) foi marcada por ausência de diálogo, interrupção de política públicas, omissão frente aos grandes temas e conservadorismo político. Focado na indústria cultural tradicional, nas belas artes, o MinC perdeu significado social, político e cultural. Regredindo para uma ideia elitista de cultura, a gestão Hollanda dedicou-se surpreendentemente a negar o que havia sido contruído em oito anos. A nova gestão herda agora muitos destes nós e desafios. No vácuo deixado pelo MinC, os movimentos culturais ocuparam o vazio não apenas para resistir, mas para levar adiante a agenda da cultura. Desse ponto de vista, muito avançamos em lucidez e na capacidade de defender agendas que unem a maior paret do setor cultural. Acreditamos que sua posse encerra este ciclo. E por isso defendemos que os programas e ações precisam não apenas ser retomados, mas fortalecidos, ampliados e atualizados. A sociedade quer voltar a formular junto ao MinC, sobretudo, para abrir novas portas e caminhos não desbravados.
O Ministério da Cultura que queremos
precisa ter as portas abertas, ser republicano, posicionando a cultura
acima de interesse partidários, armadilhas tecnocráticas ou lobbies
(muito oriundos do próprio mundo da cultura) que tentam minar a ação
pública. Assim ouvimos com alegria o chamado da
Ministra ao diálogo e à construção de uma agenda. Respeitosamente, nós,
movimentos da cultura, artistas, produtores culturais, intelectuais,
grupos culturais, pontos de cultura, povos de terreiro apresentamos
algumas propostas. Agendas que encontram base no Plano Nacional de
Cultura (2010), na II Conferência Nacional de Cultura.
1- É preciso destravar agenda da
modernização da Lei de Direitos Autorais e da fiscalização da gestão
coletiva, em especial do ECAD. Se de um lado, artistas são fragilizados
pelo atual sistema. De outro, o compartilhamento do conhecimento, a
internet e a inovação são ameaçadas por uma legislação anacrônica de
direito autoral.
2- A lei Rouanet continua gerando enormes
distorções e concentrações de recurso público. Por isso, é fundamental a
reforma imediata no financiamento da cultura, com a tramitação e
posterior sanção do Procultura e do Vale-Cultura. É preciso recuperar a
presença do MinC no Congresso Nacional: seja para o acompanhamento do
MinC na tramitação dos projetos de lei da cultura, seja para garantir o
mínimo de 20% de investimento privado em cada projeto cultural. É
preciso retomar a parceria com as Estatais, para editais mais
democráticos e transparentes.
3 – É preciso garantir o apoio do MinC à
Internet Livre, ao Marco Civil da Internet, às redes sociais e
culturais, a retomada do espaço de promoção da cultura digital,
ativamente, por meio de políticas que já foram desenhadas nas edições
dos Fóruns de Cultura Digital.
4- Retomar o fomento à diversidade
cultural, com especial atenção aos indígenas, aos pontos de cultura,
quilombolas, povos de terreiro, griôs, e seus projetos culturais.
Estudar a possibilidade de reverter o decreto de desmantelamento (em
2012) da Secretaria de Diversidade Cultural, responsável por esta
agenda. Com Lula, ultrapassamos o redutor modelo da Identidade (herdeiro
do positivismo, do nacionalismo e do militarismo). Hoje nossa grande
pauta internacional é a Diversidade Cultural, no qual a identidade não é
percebida como conjunto homogêneo, mas como rico agrupamento de signos.
Desejamos a retomada vigorosa de políticas para indígenas, ciganos,
GLBT, infância, terceira idade.
5- É necessário urgentemente destravar e
ampliar o Programa Cultura Viva. Os pontos de cultura estão há dois anos
em permanente asfixia administrativa promovida pelo MinC. É preciso
interromper o interminável ciclo de “avaliação” do programa, iniciado em
2011, que não levou a lugar algum e desmobilizou a sociedade.
6- As artes precisam de políticas mais
efetivas. É preciso desprovincianizar a Funarte, dando a ela um caráter
nacional, plural, e capaz de desenvolver políticas fundamentais na área
de música, artes visuais, cênicas. É preciso mudar a sede para Brasília.
A Funarte não pode ser apenas uma gestora de equipamentos, mas comandar
as políticas nacionais de artes. As políticas do MinC precisa ter
alcance nacional e buscar combater as desigualdades regionais. Suas
instituições devem ter sede em Brasília, na capital federal.
7- É fundamental a mudança de rumo da
Secretaria do Audiovisual e sua reorientação para trabalhar em todas as
suas dimensões criativas, técnicas e de preservação do audiovisual.
Retomar a agenda das TV públicas, e a interface com a agenda da
comunicação. É necessário recuperar programas que foram interrompidos de
forma arbitrária, como o DOC-TV Brasil.
8- Recuperar a capacidade articulação do
MinC com outros ministérios da áreas social. Educação sem cultura é
ensino, saúde sem cultura é remediação, segurança sem cultura é
repressão, desenvolvimento social sem cultura é assistencialismo. A ação
da praças de esporte e cultura tem sido conduzidas sem qualquer
transparência.
9- Distanciar o MinC de lobbies privados
que agenciam a Lei Rouanet e operam a partir do ECAD. Promover uma
política de fomento sem atendimento prioritário de partidos, clientelas
ou dos grandes operadores de incentivo fiscal. As reformas da Lei
Rouanet e do Direito Autoral, devem ser feitas a partir de uma visão de
conjunto.
10 – Sanear a Biblioteca Nacional,
garantindo que essa importante instituição cumpra sua missão de guarda e
disponibilidade do acervo. Sugerimos um novo locus de coordenação da
política de leitura, dentro do MinC, para que a política seja a mais
ampla. Sanear a política de livro e leitura de lobbies de editoras e
livreiros.
11- Garantir transparência na gestão do
IBRAM e atualizar o Iphan. As políticas para museus não podem ignorar a
demanda de acervos de artes visuais no Brasil.
12- A Ancine se transformou numa mega
agência de regulação de conteúdo. Manter a agência reguladora distante
de lobbies de produtores cinematográficos, garantindo sua eficiência e
interesse público.
A partir desses considerandos, o movimento
social das culturas se dispõe a construir conjuntamente uma agenda de
trabalho como o #NovoMinC.
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